Cartas Rasgadas em Silêncio

Conto selecionado como um dos vencedores da coletânea “Breves Ficções” da Editora Litterae.

Pôr do Sol no Gama – DF por Alexandre Bernardo

Alexandre Bernardo

Ontem eu rasguei minhas cartas de amor. Por que cartas de amor se rasgam em silêncio. Sem alarde. Sem toda a cena de uma comédia romântica. A pena foi eu perceber tudo isso já tarde demais. Depois de ter afastado quem me queria perto. Depois de ter saído do horizonte distante para outro lugar. Acredito que isso acontece todo dia e em todo o globo. A gente vai se distanciando só para dar saudade. E pensar que eu só queria te parecer longe.

Ontem eu rasguei minhas cartas de amor. Algumas nem tão de amor eram assim. Eram sobras da minha infância. Eram pedaços de mim. E eu estava fazendo uma bela limpeza na bagunça da minha vida. Um dia eu até organizo meu coração. Até lá eu sigo desenhando erros no caderno da minha história. Acontece que eu fico distraído na hora de copiar o que está escrito no quadro negro na minha frente. Começo com um quadrado em cada canto da folha e quando volto de novo a mim mesmo, todas as folhas estão rabiscadas com desenhos de lágrimas e de astronautas. 

Eu já joguei fora as cartas no meio da rua. Fazendo uma menina chorar. Como se eu jogasse fora meu coração, com a esperança de que alguém fosse voltar, catar meus pedaços e me cuidar com carinho. Não foi bem assim. As coisas não acontecem do jeito que a gente quer só motivadas pelo desejo. A existência é bem maior. Os erros são bem mais claros e evidentes, principalmente na alta madrugada. Tudo parece pequeno frente ao universo, mas na minha cabeça o universo é pequenino. Fazer a menina chorar que foi o pior para mim.

Tudo bem. Irei explicar com o máximo de detalhe que recordo para você me entender.

Quando era jovem e tolo (como se ainda não fosse ambos) encontrei uma menina na saída da escola na Ceilândia. Ela passou por mim e não me deu bola. Meu all star sujo e surrado, minhas calças jeans rasgadas e meu estilo punk de jovem amargurado. Era só isso pra se ver, pra jogar na cara do espelho que eu podia ser quem quisesse ser.

Claro que não funcionou com a maior parte da galera das outras trupes e gangues de CeiLondres. Eu era odiado por gente que nem conhecia direito e xingado por quem nem ao menos eu tinha visto na vida. Pra mim nem era bullying, porque eu nem tomava conhecimento de nenhum deles. Só os ignorava. Meu estilo de vida deu errado com cada um deles.

Mas deu certo com a garota.

Na segunda vez que a vi saindo da porta da escola, eu passei indo pra outro lugar, mas de horário marcado todo dia, o dia parecia não terminar e repetir e confundir e eu fui lá dialogar. Eu tinha um oi engasgado há dias. Entalado. Implorando pra sair. E eu gostando das saias longas pretas da menina da escola. Eu vidrado no cabelo curto que ela insistia em manter para o desespero dos amigos e familiares de modo geral – Deixa crescer esse cabelo, menina! – e Ela sorria.

Eu disse um oi fino e desesperado e me preparei para ser ignorado. Sabendo que não seria. Ela sentou do meu lado algumas vezes do lado de fora da escola. Nós procuramos alguns lugares mais longe dali. Um dia, fomos à caixa d’água mais famosa da cidade e sentamos na graminha que fica logo em frente. Foi a primeira vez que deitei no colo dela e olhei pra cima procurando o sol. O sol era ela. Eu me dei conta na hora. E então não havia mais caixa d’água, nem sol, nem grama, nem nada. Só a menina. Ela abriu o coração e entregou na minha mão. Disse que também sofria e eu não me sentia mais sozinho. Contou que tinha sido reprovada e do trabalho que dava se encaixar na vida que todos queriam que ela tivesse. Os professores também não entendiam.  Ela só queria ser ela mesma. Ela, menina da pele macia, das saias pretas longas, do cabelo curto e sol.

O primeiro momento foi mágico. Com todas as borboletas no estômago e como mandam as leis da adolescência. Eu nem me importava que meus amigos estivessem vendo e também as amigas dela observando. Eu tinha, ali, minha chance e minha menina. Não ia deixar escapar. Eu a abracei forte, mas com cuidado para não quebrar. Deixei meus lábios próximos aos dela e não tive medo de me queimar de sol. Nosso beijo era o sinal de que cada dia depois desse continuaria sendo maravilhoso. Maravilhoso, às vezes, é pouco.

Nessa idade não queremos muito além de falar. Às vezes, sobre falhar. Queremos falar com alguém que use de fato os ouvidos. Sem fones e sem proteção. Que pudesse nos ouvir sem questionar, sem julgar e sem querer te ensinar a viver. E eu queria entender a menina da escola. Queria estar do lado depois de uma nota ruim. Queria estudar com ela até mais tarde. Mas não conseguia parar de beijá-la. E nosso diálogo que eu tanto gostava foi morrendo devagar. Mas de outro modo a gente continuava a se falar.

Pouco tempo depois ela me deu a primeira carta. Era dourada nos cantos e tinha seu nome em vermelho. Em vermelho… EM VERMELHO! Nossa! Eu ficava desesperado pensando na ousadia e na mente livre que leva as garotas a pintar tudo da cor que desejam e brincar com o arco-íris sem preocupações. Eu sempre me preocupava demais! E pior de tudo… Não sabia escrever uma carta de amor.

Depois da primeira carta, eu queria responder. Dizer que gostei da carta. Dizer que gostei da caneta que ela usou e que adorei as cores. E dizer eu te amo. Dizer que eu tinha tanto pra dizer, mas nasci com uma incapacidade de dizer palavras de carinho e de demonstrar afeto. E dizer eu te amo. Mas eu nada escrevi. Rabisquei palavras tolas e trechos de canções no caderno dela e só pra ser infantil e correr mais perigo, soltei “You are the Queen of my Heart” no meio de tudo isso. Pra dizer sem dizer e ver se ela iria perceber.

Eu, muito novo e despreparado para estar com a menina da escola. Não entendia o que ela gostava. E isso me afastava. Não entendia os planos dela. E isso me afastava. Desconfiava, sofria e gritava de ciúmes e isso a afastava. E eu querendo sempre estar junto, mas desconfiando que estava perto demais. Corria dela e a deixava sozinha. Sozinha demais.

Ela sempre me entregava cartas novas em todas as datas possíveis daquele dia em diante. Eu lia a menina todos os dias. Não cansava. Decorava todas as cartas e me divertia. Guardava todas juntas como quem sabe que possui um tesouro. Meu tesouro de menina. Cartas escritas de sol.

Um dia, ela voltava de uma igreja na QNM 18 (que para quem está por fora das nomenclaturas loucas de Brasília e das cidades-satélites dos arredores, é Quadra Norte M. Sim. É só isso) e encontrou com outros amigos meus que se reuniam ali perto. Diego, na época, nosso amigo mais velho, que estava morando sozinho, fazia uma fogueira na frente de casa. Débora, Thiago, Manuel, Eduardo e Anderson e mais alguns que não me recordo o nome estavam lá também. Ele morava de frente a um terreno vazio e lá perto um estacionamento se desenhava na frente de outra igreja. Nesse tempo toda rua tinha um bar, uma igreja e uma drogaria. As ruas eram amarelas por conta das luzes dos postes. E tinha cara de cidade. Assim como em todas as ruas do mundo. Desde a Lituânia até Pasárgada. 

O vinho passava de mãos em mãos, mesmo sendo daquele barato que cheira a álcool envelhecido, se é que isso tem cheiro. Mas as mãos macias da menina da escola não tocavam. Não alcançavam. Só olhavam. E Ela sorria seu sorriso mais doce de menina abandonada. Não estava ali pra isso e nem precisava. 

Eu em casa ouvia Sex Pistols e me perguntava como amava tanto ruído. Ramones e as guitarras distorcidas e o som da microfonia era a rebeldia de décadas passadas que me atraía e me fazia pesquisar sobre a Rainha. Mesmo estando longe. E querendo ainda de todos estar mais longe. Nirvana no volume máximo. Minha cabeça era feita de ruídos. Mas não era só isso. Lembrava dos ruídos dos meus amigos. Podrera destruindo no HC com Jonathan e o punk pela causa underground do Hordi i Pogreçu com Davi, Orley e Audioslave. 

Um dos meninos fez uma brincadeira. Brincadeira mesmo. Acho que foi o André, mas nem sei se ele estava lá no dia. Sem intenção de machucar ninguém. Era um susto ou algo bobo assim. Uma corrida. São Silvestre de adolescentes na Ceilândia. E ela correu. O chão veio rápido demais e ela só pode se defender de leve com as mãos e bateu de ombros e de frente no asfalto mal feito das favelas de Brasília. Sua cabeça bateu forte no chão.

O sangue descia vermelho e eu distante. Doía. E ela sozinha. A cabeça rodava. O sangue descia ainda mais. Eu aqui e ela sozinha. Outras pessoas sentiram o momento e a ajudaram. Ela sozinha. Ela sangrava ali sozinha. Eu só fiquei sabendo das coisas no dia seguinte e apareci com a única cara que eu tinha. Tinha vergonha de mostrá-la, mas se aparecesse mascarado certamente apanharia da polícia. Se não fosse baleado. Ou confundido entre marginais com qualquer marginal da região. Eu sabia que tinha de pedir desculpas à menina da escola. Nosso tempo junto aumentava minha necessidade dela e eu não queria perdê-la assim. Acontece que ela estava sempre machucada. Essas feridas que não podem ser vistas são tão difíceis de curar. E nem adianta alguém vir e brigar com a gente por estar tirando a casquinha do machucado. Nada importa.

Ela até ficou bem e se recuperou na velocidade que só os jovens conseguem e por isso acham que são imortais. Ela até perdoou e o tempo passou. Mas nossas feridas são tão profundas quando somos jovens. Toda decepção é o fim do mundo. Toda partida é pra sempre. Ficou difícil deixar pra lá. Minha ausência era culpa e na minha presença eu criava mais motivos para plantar ódio e tristeza. Discutia por esporte. Era radical e perigoso. Andar na corda bamba das palavras e tentar sair das discussões sempre com um argumento belo e certo. Jeito de vencedor e olhar de perdedor. Como se amar a menina da escola fosse uma disputa pra ver quem odiava mais. Ver quem levantava a bandeira de paz. Deixava a menina da escola chorando usando sua longa saia preta e ia pra casa olhar sua foto e pensar: como posso ser tão estúpido? Como posso apagar o sol?

O próximo disco do The Clash eu tocava no volume máximo. Algumas músicas me deixavam feliz. Essas eu pulava. Queria ouvir o que me dava vontade de gritar, de correr e de voar. Sozinho em minha casa eu não podia fazer nada disso – Olá, é da polícia? Meu vizinho aqui da QNM 7 está gritando em casa. Acho que está morrendo – Não se preocupe, senhora, é só a crise da meia idade que hoje acerta os jovens cada vez mais cedo e mais forte – Ah! Oh… Desculpe… Obrigado, senhor policial – Ou algo assim.

Foi nesse dia que eu escrevi minha segunda carta de amor. Eu peguei um papel diferente que tinha em casa. Era de uma textura diferente, mais grosso e mais forte. Acho que duraria mais ou algo assim. É assim que se prolongava o amor? Só sei que procurei letras diferentes e desenhei seu nome no papel. Comecei citando músicas, músicas e músicas e plagiando todas as poesias que conseguia encontrar. Foi meu modo covarde de não me mostrar como eu mesmo, mas mostrar o que achava de melhor pra tentar impressionar. Não funcionou.

A menina da escola entendia muito disso. De viver. E entendeu facilmente os trechos das músicas e me viu falso debaixo da minha capa de eu mesmo disfarçado. Era doloroso ser enxergado quase tanto quanto ser amado. Eu amava do meu jeito louco desvairado, sem sentido, embriagado de tristeza, como se isso fosse do que é feito minha vida.

Eu a sentia cada vez mais distante e ficava cada vez mais sozinho. Eu tinha medo de chorar na frente dela depois de coisas tolas que falava. Sentia vergonha só de pensar. Sentia vergonha da vergonha dela em me esconder, só para ninguém me ver fraco e pensar que meu ser em cacos era despedaçado por ela. Ela falava pra eu parar de chorar se alguém estivesse chegando perto de nós. Não iria deixar aquilo ainda pior. Sentia que precisava segurá-la, mas minhas mãos pareciam ainda fracas demais. Meu espírito ainda deveras preso e pouco liberto. Sozinho. E ela sozinha demais.

Ontem eu rasguei cartas de amor. Rasguei cada um dos meus tesouros. Era somente a sobra de todo o amor que eu guardava. Percebia que cartas de amor devem ser rasgadas em silêncio, com no máximo o som de uma lágrima a rolar. Nada mais. Um murmúrio pode perturbar e chamar mais atenção do que desejamos. Não queremos isso. Não queremos mais ninguém perguntando pela dor e coçando nossas feridas abertas. Eu era infantil, e criança enfurecida não mede consequência. Queria contar a ela. Talvez eu falasse. Não duvidaria do sentimento dela. Acreditaria na verdade por trás das cartas de amor.

Eu a encontrei na porta da escola. Fui com o melhor tênis, minha mais nova camisa, meu melhor perfume e a única cara desbotada de vida. Ela percebeu. 

Você está tentando algo? Todo arrumado assim? Estou. Sim. Funcionou? Não sei. Acho que não. Não precisa ser assim. Eu prometo te ligar na próxima virada de ano. Quero ser o primeiro a ouvir sua voz. Não é suficiente. Podia ser maravilhoso, mas não é o suficiente. Um último beijo então. Não deixe as coisas mais difíceis do que já são. Eu sei. 

Errei ao lançar fora as emoções a mim direcionadas. Fui infantil, e criança enfurecida não mede consequências. 

Adeus. Um dia… Quando formos mais velhos nos veremos de novo… Quero te encontrar, quero te ver e nem que seja por um dia te fazer sonhar e acreditar. Adeus.

Eu perdi a menina da escola.

2 respostas para “Cartas Rasgadas em Silêncio”.

  1. Avatar de JACQUELINE DE ARAUJO COSTA PIRES CAVALCANTE
    JACQUELINE DE ARAUJO COSTA PIRES CAVALCANTE

    Muito bonito. Triste, mas bonito. Primeiro amor é sempre encantador e sofrido!!

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  2. Uma particularidade que geralmente me deixa curioso e faz eu me conectar com a história são os momentos que ele coloca a referência de uma música, porque eu preciso pesquisa ela, para interligar e sentir toda a atmosfera.

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